Bato na porta, sem jeito, com medo. Toco a campainha, tremo. Se abre.
- Oi
- Oi, que faz aqui?
- Er... só vim pegar as coisas que esqueci.
- Tão ali, pode pegar.
- Licença
- Pra que tudo isso? Você não é nenhum estranho aqui, até tem mais intimidade com a casa do que eu.
- É... sei lá, acho que alguma coisa mudou...
Entro, tremo, hiperventilo, arritmia... tudo aquilo já foi meu também um dia, ou melhor, considerava tão meu, o quadro pintado no meio da rua por um hippie, o filtro dos sonhos que fizemos, mais um emaranhado de linhas do que um filtro, a parede do fundo pintada com as nossas mãos, a realidade toda pintada com as nossas mãos... meu coração dói, não pareço fazer falta, ando cada passo e demoro um quilometro por ele, minhas coisas ali, empacotadas, empilhadas, cuidadosamente separadas, tão assim premeditado... tudo tão assim que acho que nem pensa mais em mim...
- Brigado por embalar tudo, guardar assim, organizar tudo.
- Ah, por nada, não queria que você tivesse trabalho de arrumar isso.
- Nem demorar pra isso né...
- Pois é, sei de suas ocupações.
- Então tá, bom vou indo viu, um beijo.
- Beijo, se cuida.
A arritmia parecia irradiar em dor, parada cardíaca... o último beijo... e ainda no rosto... só no rosto... abri a porta.
- Tchau.
- Ei, você esqueceu aquele papel
- Onde?
- Ali.
Deixo as coisas no chão, ando até o papel e não tinha nada escrito. A porta se fecha.
- Sabe? Você podia ficar...
- Me ajuda a reorganizar.