quinta-feira, 22 de julho de 2010

[CONTOS] Só, sou solidão - V

Chego na vila e logo de cara encontro os pais de Alice e Ágata, minhas estrelas... o olhar recriminador deles me destrói.
-Depois do que fizestes volta aqui!?
Como vou responder algo assim, tão incisivo? Eu não tive culpa, eu apenas acompanhei tudo, eu me calei, me omiti, estava acuado. Duas meninas lindas, Ágata eu nunca tive muito contato, mas a pequena Alice era um doce de criança, sonhadora, fazia jus ao seu nome, gêmeas, olhos negros, pareciam feito de vidro, ou algum desses materiais brilhantes, mas eu os vi opacos e sem brilho pela única vez que aconteceu, e daí se tornaram estrelas... eu tinha pouco mais de 3 anos a mais do que as duas, novo.
Os pais das duas meninas disseram mais frases que minha audição fez questão de ignorar, eu me tornei o que sou pelo que fiz naquele dia, ou melhor pelo que não fiz, por não ter feito nada. Eu era adolescente ainda, não sabia bem quais companhias eu tinha, e descobri da pior maneira possível que o ser humano é capaz de muito. As pessoas enlouquecem quando perdem algo, e mais ainda quando perdem a cabeça como resultado, as consequências dos atos das pessoas atingem mais pessoas do que se possa imaginar.
Conheci um garoto, totalmente destruído, em uma de nossas conversas ele me disse que havia perdido o pai, e a mãe, a mãe havia morrido logo ao nascimento, mas seu pai foi assassinado, um policial confundiu seu pai com um ladrão qualquer e o tratou como um saco de lixo, ou como ele dizia "acho que o policial tinha mais cuidado quando colocava o lixo pra fora do que teve com o meu pai", o garoto era totalmente transtornado, eu não achava que as ações das pessoas pudessem interferir tanto na vida de alguém assim, mudar a vida, e como isso poderia influenciar alguém.
Certa feita eu vi alguém dizer, a memória me falha pra precisar quem, mas dizia que as nossas vidas são uma sucessão de quartos, e a pessoa que está no quarto com a gente, influencia nossas vidas, imagine o que um tapa, um carinho, um beijo, um abraço, um soco, uma facada, ou no caso dele, o assassinato ao seu pai poderia fazer com a sua?
Fui em direção a casa desse garoto, eu sabia que ele não estaria mais lá, mas eu precisava ver algo, tirar uma dúvida, de algo que eu tinha quase certeza, a vida dele foi modificada, a minha também, eu não tive culpa, ou melhor, eu tive, e isso me trouxe a essa solidão imensa, me fez odiar todas as pessoas, e de tudo que são capazes, olhares recriminadores, decepcionados, é só isso que eu enxergo por toda vida.
Mãos na maçaneta, agir é preciso.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

[CONTOS] Só, sou solidão - IV

A conversa com aquela senhora ainda se estende em minha cabeça, repercute duma forma que eu não imaginava que alguém como ela poderia causar, não vou me tornar nem religioso nem muito menos me tornar a pessoa mais educada, mas a velha destinou meus pensamentos pra uma direção que não costumam ir, porque razão alguém poderia crer tanto em algo que nunca viu? Porque razão eu deixei de acreditar e ter respeito pelas pessoas? Será que eu sei a resposta...
Por alguma razão uma memória me vem à mente... numa casa, vejo meus pais, vejo algumas pessoas que conheço, estou no centro e os olhares me reprovam.
A estrada se segue... tão absorto em meus pensamentos que nem percebi uma criança do meu lado, segura com força e com tamanha concentração um catavento, de onde surgira eu não saberia responder, estava de cara amarrada.
-Pra onde vai menino?
-Indo pra vila.
-Você é de lá?
-Sou.
-Não gosta de conversar não?
-Gosto, mas prefiro ouvir.
Ele seguiu comigo até se cansar e se sentar debaixo de uma árvore na margem da estrada, catavento fincado no chão, e os olhos fixos pra ele, se me perguntassem diria que é autista, invejaria se ele fosse, meu autismo foi de escolha, e todos me recriminaram por isso. Os amigos que eu tinha, eu perdi, perdi porque deixei de acreditar, mas não neles, eles foram afetados, as pessoas são assim, e eu não posso me dizer totalmente diferente delas, generalizamos, querendo ou não, assumindo ou não, instintivamente ou não. Não tenho culpa, não acho que eu tenha... me trancar num farol é sinal do quê?
"Gosto, mas prefiro ouvir."
Eu sempre ouço, falar nunca funcionou, e quando resolvi falar, as pessoas se sentiram agredidas, é mais fácil sorrir em conjunto do que chorar sozinho ainda que não veja graça alguma em nada, e por isso eu ouvia e nada dizia, as pessoas não admitem que seus erros sejam expostos, e quando expostos em vitrine elas se escondem, esquivam, ou procuram um alvo.
O menino me lembra alguém, fisicamente com certeza alguém que eu tenha conhecido, mas muito mais do que isso, introspectivo, calado, um mundo só pra ele, me pergunto se ele gosta de ter que sair de sua casa.
O caminho se segue e a vila se aproxima, tenho que pensar no que dizer, e no que podem me dizer, as pessoas de quem eu me afastei a meros metros de distância, física, distância física.
Pernas travando, a minha "estrada" começa agora.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

[CONTOS] Só, sou solidão - III

O dia amanhece, o Sol se mantém ainda sob o horizonte que meus olhos alcançam, devo ter despertado logo ao primeiro sinal de luz dentro do quarto, dormi pouco, mas o suficiente pra sonhar, estranho até, normalmente quando durmo apago completamente e não me recordo se sonhei ou não no outro dia, mas hoje é diferente, hoje eu me recordo do que sonhei, quem sabe um presságio do que há por vir, vi perfeitamente a pequena vila que deixei pra trás, vi pessoas que não via há anos, e por alguma razão vi pessoas que tinha se aproximado nos últimos sumindo, tornando-se opacas. É devo seguir o caminho de volta, Ágata e Alice sumiram completamente, esse pensamento me traz uma insegurança enorme, mas não é hora pra isso.
-Aqui está a chave, obrigado.
-Disponha, volte sempre.
Voltar sempre? Não sei o que pode vir a acontecer ao longo dos dias, pensamento de futuro distante fogem da minha mente, provavelmente se esquecerá de mim em poucos minutos, e isso deve ocorrer frequentemente, as vidas das outras pessoas não têm importância, limitamos nossas preocupações reais a um círculo direto de aproximadamente 40 pessoas, sendo bem maleável, e eu ainda posso reduzir esse número, e creio que ninguém me inclua nesse círculo.
Seguir a estrada me traz de volta ao sonho, aos sorrisos disfarçados, e às lágrimas incontidas, quão paradoxal poderia um sonho ser, felicidade e tristeza em sintonia, mas isso não é tão surreal assim, pessoas são assim, sofrimento de um pode ser a diversão de outrem, e é pra esse tipo de cenário que eu me encaminho, desse tipo de visão que eu tenho me afastado, e agora vou nessa direção, pular de ponta cabeça sem nem ao menos calcular a profundidade.
Meus olhos veem no horizonte uma casa velha, um quintal típico de roça, galinhas, e uma horta, diante da casa uma velha, provavelmente mais velha que a própria casa, olhar cansado, vassoura numa mão, um terço em outra, em outros tempos eu evitaria conversar com ela, não tenho nada contra sua idade, meu problema se encontra em sua mão, eu não sou religioso, e acho que quem é acaba por se conformar demais com muita coisa, é só uma visão débil de alguém sem rumo.
-Dia.
-Dia.
-Tem ninguém pra ajudar a senhora não?
-Tenho sim, tá aqui na minha mão.
-E varre pra senhora?
-Me mantém de pé, é mais importante do que se fizesse por mim.
Não esperaria ser convidado pra um desjejum em sua casa, minha educação nunca fora das melhores, e o pouco contato com as pessoas me fez perder as noções de civilidade, ou melhor fiz questão de ignorar todas.
-Ei, toma aqui, coma.
-Por quê?
-Porque quem se encontra da maneira que você se encontra, é de se esperar que te falte respeito.
Não esperaria levar bronca de qualquer que fosse a pessoa, mas prefiro me calar com a comida entre os dentes, do que me calar com qualquer outra coisa que seja. Procurarei mudar de atitude, mas não agora, é difícil fazer tudo de uma vez, ainda nem me acostumei com a ideia de ter saído do farol, mudar a forma de tratar as pessoas leva tempo, e eu preciso manter os escudos erguidos, quando os deixo cair eu costumo me machucar, as pessoas se aproveitam de fragilidades, e se você as demonstra, tenha certeza, serão aproveitadas, manter os escudos é necessário.
Estrada se segue, cenário do sonho se aproxima.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

[CONTOS] Só, sou solidão - II

Ando em direção ao horizonte que eu evitei todos esses anos, o medo torna esse caminhar mais difícil do que possa parecer, olho pra trás e vejo "meu" farol se afastando, olho pro céu, já não distingo quem é Ágata ou Alice, sinto-me mais só do que poderia, nem elas eu tenho mais pra me acompanhar, estão lá, só não sei em que direção exata. Sei que deveria esperar o dia amanhecer, mas seguir o impulso que eu nunca tinha tido antes de sair e tentar fazer alguma diferença pro meu futuro é necessário, e além do mais as únicas companhias que eu tenho estão sobre um céu que eu só posso enxergar da forma que se apresenta no momento, à noite.
Olho em volta, o caminho de pedras que eu piso chega a ser irônico com a quantidade de pedras no percurso de vida que venho encontrando. Pra onde eu me encaminho? Não tenho plano algum, nenhuma ideia do próximo passo, se acabo com os fantasmas do passado ou se reivindico pra mim o direito de um futuro melhor... na verdade, eu sei o que devo fazer, mas tudo a seu tempo. O caminho se estende, vai se estender ainda mais, fiz questão de me isolar num lugar distante das pessoas.
Todo mundo tem sofrimentos, todo mundo tem angústias, alguns tem isso de forma passageira, outros carregam isso pra vida, o que diferencia nem é a intensidade, e sim a forma de encarar. Eu sempre encarei da pior maneira possível, mas pretendo mudar isso. A estrada revela a paisagem que deixei pra trás, sinuosa, casas muradas, luzes apagadas, é tarde, tarde até pra mim. Provavelmente terei que parar em alguma pousada pra dormir, preciso, e preciso descansar e refletir. Ainda visualizo os acontecidos que me trouxeram até aqui, difícil descrevê-los ou resumir tudo, e juntar as ideias, mas tenho que fazer isso com calma, tudo a seu tempo.
É estranho me imaginar fazendo o que estou fazendo, indo de encontro a tudo que sempre dei as costas e fingi que não existiam mais, as pessoas falam de amores, de perdas, de dores, não... eu também falo, não sou diferente de ninguém, mas não sou igual a ninguém, queria ter tido capacidade de encarar tudo de uma outra forma, não deveria me deixar afetar pelas outras pessoas como eu me deixei toda a minha vida, eu escolhi a reclusão pra não ser afetado por elas, mas do que adiantou? De nada adiantou, porque as memórias ficam, os rostos podem desbotar nos pensamentos, mas os nomes sempre darão uma cor extra, um brilho extra, e o desbotado é removido, e recupera-se a cor e a nitidez como se fosse vívido agora, ontem no máximo. Me pergunto se com todo mundo isso acontece, ou se só comigo, se só eu me deixo enfraquecer ao invés de ter fortalecido pelas coisas que me aconteceram. No meu farol eu andava em círculos, subindo e descendo as escadas, em espiral, e essa tem sido a metáfora de minha vida, andar em círculos, indo e voltando pro mesmo ponto, preciso sair desse círculo, desse vício.
A estrada revela um pouco mais adiante uma casa, é, é a mesma pousada que eu imaginei.
- Um quarto por favor?
- O pernoite são 25 reais.
- Aqui.
- Chaves aqui, primeira ali a direita.
Fecha-se a porta, em seguida os olhos.